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Poema de Auteil

Vinicius de Moraes

Letra

    A coisa não é bem essa.
    Não há nenhuma razão no mundo (ou talvez só tu, Tristeza!)
    Para eu estar andando nesse meio-dia por essa rua estrangeira com o nome de um pintor estrangeiro.
    Eu devia estar andando numa rua chamada Travessa Di Cavalcanti
    No Alto da Tijuca, ou melhor na Gávea, ou melhor ainda, no lado de dentro de lpanema:
    E não vai nisso nenhum verde-amarelismo. De verde quereria apenas um colo de morro e de amarelo um pé de acácias repontando de um quintal entre telhados.
    Deveria vir de algum lugar
    Um dedilhar de menina estudando piano ou o assovio de um ciclista
    Trauteando um samba de Antônio Maria. Deveria haver
    Um silêncio pungente cortado apenas
    Por um canto de cigarra, bruscamente interrompido
    E o ruído de um ônibus varando como um desvairado uma preferencial vizinha.
    Deveria súbito
    Fazer-se ouvir num apartamento térreo próximo
    Uma fresca descarga de latrina abrindo um frio vórtice na espessura irremediável do mormaço
    Enquanto ao longe
    O vulto de uma banhista (que tristeza sem fim voltar da praia!)
    Atravessaria lentamente a rua arrastando um guarda-sol vermelho.
    Ah, que vontade de chorar me subiria!
    Que vontade de morrer, de me diluir em lágrimas
    Entre uns seios suados de mulher! Que vontade
    De ser menino, em vão, me subiria
    Numa praia luminosa e sem fim, a buscar o não-sei-quê
    Da infância, que faz correr correr correr...
    Deveria haver também um rato morto na sarjeta, um odor de bogaris
    E um cheiro de peixe fritando. Deveria
    Haver muito calor, que uma sub-reptícia
    Brisa viria suavizar fazendo festa na axila.
    Deveria haver em mim um vago desejo de mulher e ao mesmo tempo
    De espaciar-me. Relógios deveriam bater
    Alternadamente como bons relógios nunca certos.
    Eu poderia estar voltando de, ou indo para: não teria a menor importância.
    O importante seria saber que eu estava presente
    A um momento sem história, defendido embora
    Por muros, casas e ruas (e sons, especialmente
    Esses que fizeram dizer a um locutor novato, numa homenagem póstuma: "Acabaram de ouvir um minuto de silêncio…")
    Capazes de testemunhar por mim em minha imensa
    E inútil poesia.
    Eu deveria estar sem saber bem para onde ir: se para a casa materna
    E seus encantados recantos, ou se para o apartamento do meu velho Braga
    De onde me poria a telefonar, à Amiga e às amigas
    A convocá-las para virem beber conosco, virem todas
    Beber e conversar conosco e passear diante de nossos olhos gratos
    A graça e nostalgia com que povoam a nossa infinita solidão.


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